terça-feira, julho 09, 2002





A Tradição da Cobardia Política

Por PEDRO PAULO DE AZEREDO PERDIGÃO

Terça-feira, 9 de Julho de 2002

A edição do jornal "Le Monde" de 05/07/02 trazia, na primeira página, uma notícia verdadeiramente arrepiante: numa vila paquistanesa um rapaz de doze anos atreveu--se a cortejar uma rapariga de uma casta superior contra as tradições locais. De acordo com a referida notícia, as autoridades locais prenderam o "infractor", tendo o mesmo sido sodomizado várias vezes enquanto estava sob custódia policial. Mas, os castigos à alegada ofensa contra os costumes e usos locais não ficaram por aqui, pois a irmã do "arguido" foi violada colectivamente e depois foi enviada para casa, nua.


Desde sempre e ainda hoje, o argumento da tradição tem sido utilizado para justificar todo o tipo de sofrimentos infligidos ao homem e aos animais. No entanto, nos países da União Europeia, atravessados que são por tradições de vária ordem - por vezes contraditórias, as tradições mais nefastas são afastadas pelo legislador, nomeadamente quando confrontadas com valores diferentes, fruto da evolução e da suavização dos costumes.


A tradição é que, enquanto tal, não é critério suficiente para manter uma determinada prática que choca com o sentimento dominante de uma sociedade, que com ela não se identifica ou,que, inclusivamente, a considera atávica e medieval.


Foi pois com grande surpresa que assisti aos desenvolvimentos relativos à situação legislativa das touradas com touros de morte em Barrancos e que irão ser discutidos na Assembleia da República, no próximo dia onze deste mês.


Outra não podia ser a minha reacção: quando a tendência mundial vai no sentido da protecção legal do animal, enquanto ser com dignidade autónoma, Portugal prepara-se para um grave retrocesso nessa mesma protecção. Mais grave, fá-lo com o apoio concertado das instituições políticas do Estado Português, obrigadas pela sua legitimidade democrática ao avanço
civilizacional.


Não é irrelevante notar que o processo legislativo natural no contexto europeu, tem sido precisamente no sentido de ampliar e garantir a protecção legislativa dos direitos dos animais. Veja-se a recente alteração da Constituição Alemã que especificamente prevê a protecção aos animais como objectivo do Estado Alemão.


Curiosamente neste campo a bitola europeia é posta de lado e os avanços legislativos não são tidos em consideração. Pelo contrário, ao avesso do que se passa em qualquer outro país civilizado, Portugal prepara-se para restringir ainda mais a parca protecção que concede aos animais, mediante uma lei que retirará a ilicitude da realização de touradas com touros de morte mediante a prova da existência de uma tradição ininterrupta e enraizada na cultura local. Na prática, a prova dessa tradição ficará a cargo dos Municípios, e daí ser de esperar que as touradas com touros de morte passem a ser frequentes no nosso país, sendo certo que não faltarão autarcas a descobrir mais "tradições".


Fundamenta o nosso poder político que de nada serve ter uma lei que não é cumprida... como se o incumprimento não resultasse da falta de iniciativa desse mesmo poder e não lhe fosse por isso imputável.


Efectivamente, foi tornado público pelo poder político através dos meios de comunicação social que a lei relativa às touradas com touros de morte, como está, não serve. A lei existe mas não é cumprida: e ainda que os nossos tribunais reconheçam a ilegalidade da sua realização, a verdade é que a população de Barrancos (note-se, uma povoação que terá cerca de 2.000
habitantes), não a cumpre e a autoridade policial e o Executivo não a fazem cumprir, apesar de notificadas pelos tribunais para esse efeito.


Desculpas como as apresentadas não podem deixar de ser consideradas de "mau pagador", indiciando que as instituições democráticas estão pressionadas por lobbies e interesses poucos claros, que não são certamente os melhores interesses do Estado.


O interesse do Estado não é fazer leis que possam ser cumpridas; o interesse do Estado é fazer cumprir as leis que são decretadas pelo legislador, democraticamente eleito. Assim funciona a democracia. Este é o melhor interesse do Estado.


E, se não for assim, acabem-se com os impostos, que a evasão fiscal é mais reiteradamente praticada que as touradas com touros de morte.


Aliás, só uma pessoa pouco lúcida não vê o que está subjacente à anunciada alteração legislativa: evitar que o Executivo, liderado pelo Senhor Dr. Durão Barroso - que no seu programa de governo defende o reforço da autoridade do Estado e que, enquanto oposição,criticou o governo socialista a propósito da questão de Barrancos - não passe pela vergonha nacional de, uma vez mais, insistir num comportamento absentista e cúmplice de não fazer cumprir a lei e as decisões dos Tribunais.


Mas, o mais grave de tudo isto, são as consequências que a aprovação desta Lei trará ao país e que ultrapassarão em larga escala o caso de Barrancos.


À cabeça, introduzem-se modificações na vulgarmente conhecida como "Lei da Protecção Animal", a Lei 92/95, de 12 de Setembro, que, aliás, ainda hoje está à espera de ser regulamentada. A proibição genérica nela consagrada de que os animais não podem sofrer ou ser mortos desnecessariamente, passa agora a claudicar perante uma "adequada justificação legal", conceito que o diploma curiosamente não explicita.


Atendendo a que os usos, os costumes e o "património cultural" vêm previstos nas leis nacionais, temos aui uma porta aberta para que ,no dia a dia, a Lei 92/95,de 10 de Setembro, fique reduzida a um mero ornamento decorativo, um diploma legislativo para "épater le bourgois", ou para que, perante os nossos parceiros europeus,não se diga que Portugal não tem uma Lei de protecção dos animais.


Por outro lado,o projecto de lei em apreço tenta também ocultar aquilo que verdadeiramente lhe está subjacente, e que o forte empenhamento de deputados como Telmo Correia do CDS-PP, ou Henrique Chaves do PSD, na feitura do respectivo texto, deixa antever: a introdução em Portugal da touradas com touros de morte e o ignóbil espectáculo da sorte de varas. Nos termos do projecto, tais práticas só serão autorizadas se a Inspecção-Geral da Actividades Culturais concordar, e isto com base em parecer fundamentado da câmara municipal do local onde está prevista a realização do espectáculo. Trata-se, como é evidente, de um falso controlo administrativo, porquanto em Barrancos nos últimos anos as touradas de morte não deixaram de ser licenciadas e precisamente pela aludida Inspecção. Na prática, e como a Inspecção-Geral das Actividades Culturais tem falta de meios e de pessoal, o licenciamento é
feito pelas próprias autarquias.


Assim, a curto prazo, autarquias como Vila Franca de Xira, Santarém ou Moita, etc, reivindicarão tradições ancestrais e, à boa maneira portuguesa, as coisas irão surgindo como um facto consumado, sem haver controle administrativo ou judicial capaz de lhes pôr côbro.


Em suma, aquilo que no nosso país nas últimas décadas era uma prática única e excepcional, passará a generalizar-se com a aprovação da mencionada Proposta de Lei.


Mas não será isso o que verdadeiramente se pretende, Senhores deputados?


Advogado





salamandrine 11:39



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